O PURGATÓRIO
DOUTRINA CATÓLICA
Purgatório
(Lat., "purgare", limpar, purificar), de acordo com o ensinamento
Católico, é um lugar ou condição de pena temporária para aqueles que,
partindo desta vida na graça de Deus, não estão inteiramente livre das
faltas veniais ou não cumpriram completamente a satisfação devida por
suas transgressões.
A
fé da Igreja no que diz respeito ao purgatório é claramente expressa no
Decreto de União composto no Concílio de Florença (Mansi, t. XXXI, col.
1031), e no decreto do Concílio de Trento (Sess. XXV) que definiu:
"Já
que a Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, apoiada nas
Sagradas Letras e na antiga Tradição dos Padres, ensinou nos sagrados
Concílios e recentemente também neste Concílio Ecumênico, que existe
purgatório, e que as almas que nele estão detidas são aliviadas pelos
sufrágios dos fiéis, principalmente pelo sacrifício do altar, prescreve o
santo Concílio aos bispos que façam com que os fiéis mantenham e creiam
a sã doutrina sobre o purgatório, aliás transmitida pelos santos Padres
e pelos Sagrados Concílios, e que a mesma doutrina seja pregada com
diligência por toda parte" (Denzinger, "Enchiridon", 983).
As
definições da Igreja não vão além, mas a tradição dos Padres e os
Escolásticos devem ser consultados para explicar os ensinamentos dos
concílios e para esclarecer a crença e as práticas dos fiéis.
Pena temporária
É
claro o ensino da Escritura de que a pena temporal seja devida ao
pecado, mesmo depois do próprio pecado ter sido perdoado por Deus. Deus,
de fato, fez o homem sair de sua primeira desobediência e deu-lhe o
poder para governar todas as coisas (Sb 10,2), contudo o condenou a
"comer o seu pão com o suor de seu rosto" até que volte ao pó. Deus
perdoou a incredulidade de Moisés e Aarão, mas como pena, não os deixou
entrar na "terra prometida" (Nm 20,12). O Senhor apagou o pecado de
Davi, mas a vida do seu filho foi tirada porque Davi fez com que os
inimigos de Deus blasfemassem contra seu santo Nome (II Sm 12,13-14). No
Novo Testamento, como no Antigo, a esmola e o jejum, e de modo geral as
obras de penitência, são os verdadeiros frutos do arrependimento (Mt
3,8; Lc 17,3; 3,3). Todo o sistema penitencial da Igreja testemunha que a
aceitação voluntária de obras penitenciais tem sido sempre parte do
verdadeiro arrependimento e o Concílio de Trento (Sess. XIV, can. xi)
lembra aos fiéis que Deus nem sempre redime de toda a pena devida ao
pecado junto com a culpa. Deus requer satisfação, e punirá o pecado, e
esta doutrina envolve como necessária consequência a crença de que o
pecador que falha em fazer penitência nesta vida, deva ser punido no
outro mundo e assim não seja separado eternamente de Deus.
Pecados veniais
Aos
olhos de Deus os pecados de modo algum são iguais, tanto que ninguém
ousa dizer que as faltas cotidianas da fragilidade humana serão punidas
com a mesma severidade com que o serão as graves violações da lei de
Deus. Por outro lado, qualquer um que entre na presença de Deus deve ser
perfeitamente puro, pois no mais estrito sentido os olhos de Deus "são
por demais puros para verem o mal" (Hab 1,13). Pelas faltas veniais,
pelo pagamento da pena temporal devida ao pecado na hora da morte, a
Igreja sempre ensinou a doutrina do purgatório.
Esta
crença foi tão enraizada em nossa comum humanidade que foi aceita pelos
Judeus, e ao menos de modo obscuro pelos pagãos, muito antes da vinda
do Cristianismo. ("Eneida", VI, 735 ss.; Sófocles, "Antígona," 450 ss.).
ERROS
Epifânio
(Haer., lxxv, P.G., XLII, col. 513) acusa Aërius (séc. IV) de ter
ensinado que as orações pelos mortos eram inúteis. Na Idade Média, a
doutrina do purgatório foi rejeitada por Albigenses, Valdenses e
Hussitas. São Bernardo (Serm. lxvi in Cantic., P.L. CLXXXIII, col. 1098)
afirma que os chamados "Apostolici" negavam o purgatório e a utilidade
das orações pelos defuntos. Muitas discussões foram levantadas sobre a
posição dos Gregos na questão do purgatório. Parece que a grande
diferença de opinião não era sobre a existência do purgatório, mas sobre
a natureza do fogo purgatorial; todavia São Tomás prova a existência do
purgatório em sua dissertação contra os erros dos Gregos, e o Concílio
de Florença também achou necessário afirma a fé da Igreja no assunto
(Belarmino, "De Purgatorio," lib. I, cap. i). A Igreja Ortodoxa moderna
nega o purgatório, mas é ainda mais inconsistente para manifestar sua
crença.
No
início da Reforma houve certa hesitação especialmente da parte de
Lutero (Disputa de Leipzig) se a doutrina deveria ser retida, mas como a
brecha aumentou, a negação do purgatório tornou-se universal entre os
Reformadores e Calvino chamou a posição católica de "exitiale commentum quod crucem Christi evacuat... quod fidem nostram labefacit et evertit"
("uma invenção destruidora que esvazia a cruz de Cristo... e que
enfraquece e deturpa a nossa fé", Institutiones, lib. III, cap. v, 6).
Os Protestantes Modernos, enquanto evitam o nome purgatório,
frequentemente ensinam a doutrina do "estado intermediário" e Martensen
("Christian Dogmatics," Edinburgh, 1890, p. 457) escreve: "Já que
nenhuma alma deixa esta existência presente num estado plenamente
preparado e completo, devemos supor que haja um estado intermediário,
uma região de desenvolvimento progressivo, (?) em que as almas são
preparadas para o juízo final" (Farrar, "Mercy and Judgment," London,
1881, cap. iii).
PROVAS
A
doutrina Católica do purgatório supõe o fato de que alguns morrem com
faltas menores, das quais não houve verdadeiro arrependimento, e também o
fato de que a pena temporal devida ao pecado não foi completamente paga
nesta vida. As provas para a posição Católica, tanto na Escritura como
na Tradição, também estão unidas na prática de se rezar pelos mortos.
Pois por que razão rezar pelos mortos, se não houver uma crença no poder
das orações de proporcionar conforto àqueles que ainda estão excluídos
da visão de Deus? Tão veraz é este posicionamento que as orações pelos
mortos e a existência de um lugar de purgação são mencionados
conjuntamente nas mais antigas passagens dos Padres, os quais alegam
razões para se socorrer as almas dos defuntos. Os que se opuseram à
doutrina do purgatório confessaram que orações pelos mortos seriam um
argumento irrefutável se a moderna doutrina de um "juízo particular"
tivesse sido recebida nos tempos primitivos.
Mas
basta ler os testemunhos alegados em seguida para se assegurar que os
Padres falam, de uma vez só, de oblações pelos mortos de um lugar de
purgação; e basta consultar as evidências encontradas nas catacumbas
para igualmente se assegurar que a fé Cristã lá expressa abraçou
claramente uma crença no juízo imediato à morte. Wilpert ("Roma
Sotteranea," I, 441) assim conclui o capítulo 21, "Che tale
esaudimento", etc.:
A
intercessão foi feita pela alma do ente querido falecido e Deus ouviu a
oração e a alma passou para um lugar de luz e refrigério".
"Certamente," Wilpert acrescenta, "tal intercessão não teria lugar se
não se tratasse do juízo particular e sim do final.
Alguma
ênfase também foi colocada na objeção de que os antigos Cristãos não
tinham concepção clara do purgatório, e que eles pensavam que as almas
dos falecidos permaneciam na incerteza da salvação até o juízo; e
consequentemente eles rezavam para que os que partiram antes pudessem
ser livrados, no juízo final, dos tormentos eternos do inferno. As mais
antigas tradições Cristãs são claras quanto ao juízo particular, e mais
ainda no que tange a uma nítida distinção entre o purgatório e o
inferno. As passagens alegadas como referentes a livrar-se do inferno
não podem compensar as evidências dadas abaixo (Belarmino, "De
Purgatorio," lib. II, cap. v). Quanto ao famoso caso de Trajano, que
inquietou os Doutores da Idade Média, conferir Belarmino, loc. cit.,
cap. Viii.
Antigo Testamento
A tradição dos Judeus é proposta com precisão e clareza no II Livro dos Macabeus. Judas, o comandante das forças de Israel,
fez
uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas, para que se
oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo e santo modo de agir,
decorrente de sua crença na ressurreição, porque, se ele não julgasse
que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles.
Mas, se ele acreditava que uma bela recompensa aguarda os que morrem
piedosamente, era esse um bom e religioso pensamento; eis por que ele
pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas
faltas. (2Mc 12,43-46)
No
tempo os Macabeus, líderes do povo de Deus, não hesitaram em afirmar a
eficácia das orações oferecidas pelos mortos, na intenção de que aqueles
que partiram desta vida encontrassem perdão para seus pecados e
esperança de eterna ressurreição.
Novo Testamento
Há
várias passagens no Novo Testamento que apontam para um processo de
purificação após a morte. Assim, Jesus Cristo declara (Mt 12,32): "Todo
o que tiver falado contra o Filho do Homem será perdoado. Se, porém,
falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste século nem
no século vindouro". De acordo com Santo Isidoro de Sevilha (Deord. creatur., c. xiv, n. 6) estas palavras provam que na próxima vida "alguns pecados serão perdoados e purgados por um certo fogo purificador". Santo Agostinho também argumenta que "não
se diria verdadeiramente que alguns pecadores não serão perdoados nem
neste mundo nem no próximo a menos que houvessem outros [pecadores] que,
não perdoados neste, serão perdoados no próximo" (Cidade de Deus
XXI.24). A mesma interpretação é dada por Gregório Magno (Dial., IV,
xxxix); São Beda (comentário neste texto); São Bernardo (Sermo lxvi in
Cantic., n. 11) e outros eminentes teólogos.
Um outro argumento é fornecido por São Paulo em 1Cor 3,11-15:
"Quanto
ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto:
Jesus Cristo. Agora, se alguém edifica sobre este fundamento, com ouro,
ou com prata, ou com pedras preciosas, com madeira, ou com feno, ou com
palha, a obra de cada um aparecerá. O dia (do julgamento)
demonstrá-lo-á. Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o
trabalho de cada um. Se a construção resistir, o construtor receberá a
recompensa. Se pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém
passando de alguma maneira através do fogo".
Enquanto
esta passagem apresenta considerável dificuldade, ela é considerada por
muitos dos Padres e teólogos como evidência da existência de um estado
intermediário em que o entulho das transgressões mais leves será
queimado, e a alma assim purificada será salva. Esta, de acordo com
Belarmino (De Purg., I, 5), é a interpretação comumente dada pelos
Padres e teólogos; e cita para este efeito:
Santo Ambrósio (comentário ao texto, e Sermo xx in Ps. cxvii),
São Jerônimo, (Comentário sobre Amós, c. iv),
Santo Agostinho (Comentários ao Salmo 37),
São Gregório (Dial., IV, xxxix), e
Orígenes (Homilia VI sobre o Êxodo).
Veja-se
também São Tomás, "Contra Gentes", IV, 91. Para uma discussão do
problema exegético, ver Atzberger, "Die christliche Eschatologie", p.
275.
Tradição
Esta
doutrina de que vários dos que morreram estão ainda num lugar de
purificação e que orações são úteis para ajudar os mortos é parte da
mais antiga tradição Cristã. Tertuliano, no "De corona militis", menciona orações pelos mortos como um mandato Apostólico, e no "De Monogamia" (capítulo 10) ele aconselha a viúva a "rezar pela alma de seu marido, pedindo repouso para ele e participação na primeira ressurreição"; ele manda também que ela "faça oferendas por ele no aniversário de seu falecimento",
e culpa-a de infidelidade se ela for negligente em socorrer sua alma.
Este costume estabelecido na Igreja é claro em São Cipriano, que (P.L.
IV, col. 399) proibiu as costumeiras orações por aquele que violou a lei
eclesiástica. "Nossos
predecessores prudentemente advertiram que nenhum irmão, partindo desta
vida, pode nomear um clérigo como seu executor [testamentário] (pois este ofício não podia ser recusado no Direito Romano); e se ele o fizer, nenhuma oferenda deverá ser feita por ele, nem o sacrifício oferecido pelo seu repouso".
Muito
antes de Cipriano, Clemente de Alexandria enveredou pela questão do
estado ou condição do homem que, reconciliado com Deus no leito de
morte, não teve tempo para cumprir a penitência devida à sua
transgressão. Sua resposta é: "o
fiel, pela disciplina, despoja-se de suas paixões e passa para a mansão
que é melhor que a primeira, ou seja, passa para o maior tormento,
exercitando o arrependimento pelas faltas cometidas depois do batismo.
Ele, então, é torturado ainda mais, não tendo alcançado o que vê outros
terem conseguido. Os maiores tormentos, de fato, são indicados ao fiel.
Pois a justiça de Deus é boa, e sua bondade é justa. Embora essas penas
cessem no curso da expiação e purificação de cada um, ainda que..." etc. (P.G. IX, col. 332).
Em
Orígenes a doutrina do Purgatório é muito clara. Se um homem parte
desta vida com faltas leves, ele é condenado a um fogo que queima o
material leve, e prepara a alma para o reino de Deus, onde nada sujo
pode entrar. "Pois
se no fundamento de Cristo tu construíste não só ouro e prata e pedras
preciosas (1Cor 3), mas também madeira, feno e capim, o que esperas
quando a alma tiver de se separar do corpo? Entrarias no céu com tua
madeira, feno e capim e assim sujarias o reino de Deus, ou por causa
destes impedimentos ficarias de fora e recompensa nenhuma terias pelo
teu ouro, prata e pedras preciosas? Nada disso é justo. Resta, pois, que
serás entregue a um fogo que queima o material leve, pois nosso Deus,
para os que compreendem as coisas celestes, é chamado de fogo
purificador. Mas este fogo não consome a criatura, mas a obra dela, a
madeira, o feno e a grama. Está claro que o fogo destrói a madeira de
nossas transgressões e nos entrega a recompensa de nossas grandes obras" (P.G., XIII, col. 445, 448).
A
prática apostólica de se rezar pelos mortos, que passou para a Liturgia
da Igreja, é tão clara no séc. IV como no XX. São Cirilo de Jerusalém
(Catequeses Mistagógicas V.9) descrevendo a liturgia, escreve: "Depois
ainda rezamos pelos santos padres, bispos adormecidos e, enfim, por
todos os que partiram em comunhão conosco, persuadidos de que será de
máximo proveito para as almas, pelas quais a súplica é elevada enquanto
repousa a santa e tremenda vítima no altar". São Gregório de Nissa
(P.G., XLVI, col. 524, 525) afirma que a fraqueza do homem é purgada
nesta vida pela oração e pela sabedoria, ou expiada na próxima por um
fogo purificador. "Quando
ele deixar o corpo e for conhecida a diferença entre o vício e a
virtude, ele não poderá aproximar-se de Deus até que o fogo purificador
tenha limpado todas as manchas com que sua alma se infestou. Este mesmo
fogo em outros cancelará a corrupção da matéria e a propensão ao mal". Pelo mesmo período as Constituições Apostólicas nos dão os formulários usados para socorrer os mortos. "Oremos
por nosso irmão que adormeceu em Cristo, para que Deus, que em seu amor
pelos homens recebeu a alma deste falecido, perdoe-lhe toda falta, e em
misericórdia e clemência o receba no seio de Abraão, com os que nesta
vida agradaram a Deus" (P.G. I, col. 1144). Nem podemos passar por
cima do uso dos dípticos onde os nomes dos mortos eram inscritos; e sua
recordação pelo nome nos Sagrados Mistérios (uma prática vinda dos
Apóstolos) era considerada por Crisóstomo como a melhor forma de
socorrer os mortos (Homilia 41 na Primeira Carta aos Coríntios, n. 8).
O
ensinamento dos Padres e os formulários usados na Liturgia da Igreja,
encontram expressão nos antigos monumentos Cristãos, particularmente
naqueles contidos nas catacumbas. Nas tumbas dos fiéis eram inscritas
palavras de esperança, pedidos por paz e descanso; e os aniversários
traziam os fiéis ao redor dos túmulos dos falecidos para fazerem
intercessão pelos que os precederam. Na realidade isto não é nada mais
que a fé expressada no Concílio de Trento (Sess. XXV, "De Purgatorio"), e
para esta fé as inscrições nas catacumbas são, sem dúvida, testemunhas.
No
séc. IV no Ocidente, Ambrósio insiste, no seu comentário a São Paulo
(1Cor 3), na existência do purgatório, e em seu magistral discurso
funeral (De obitu Theodosii), assim reza pela alma do imperador
falecido: "Dai,
ó Senhor, descanso ao vosso servo Teodósio, aquele descanso que
preparastes para os vossos santos... Eu o amei, por isso o seguirei para
a terra dos vivos; não o deixarei até que minhas orações e lamentos
façam com que seja admitido no monte santo do Senhor, para onde é
chamado" (P.L., XVI, col. 1397). Santo Agostinho é ainda mais claro que seu mestre. Ele descreve duas condições dos homens: "alguns
lá estão que partiram desta vida não tão ruins para que fossem julgados
indignos de misericórdia, nem tão bons para estarem habilitados à
felicidade imediata" etc., e na ressurreição ele diz que haverão alguns que "terão passado por estas dores, às quais estão susctíveis os espíritos dos mortos" (Cidade de Deus XXI.24). E assim, pelo fim do séc. IV:
-
não só havia orações pelos mortos em todas as liturgias, como os Padres
afirmaram que tais práticas vieram dos próprios Apóstolos;
- os que eram auxiliados pelas orações dos fiéis e pela celebração dos Sagrados Mistérios estavam num lugar de purgação;
- de onde, quando purificados, "eram admitidos no Monte Santo do Senhor".
Tão
clara é esta Tradição patrística que aqueles que não acreditam no
purgatório foram incapazes de mostrar qualquer séria dificuldade dos
escritos dos Padres. As passagens citadas como contrárias ou não tocam a
questão como um todo ou não são tão claras, de modo que não se
equiparam à expressão perfeitamente aberta da doutrina como encontrada
na maioria dos Padres que são citados como de opiniões contrárias
(Belarmino "De Purg.", lib. I, cap. xiii).
DURAÇÃO E NATUREZA
Duração
A
maioria das razões indicadas para a existência do purgatório apontam
seu caráter passageiro. Nós rezamos, oferecemos sacrifícios pelas almas
aí detidas a fim de que "Deus na misericórdia perdoe toda falta e as receba no seio de Abraão"
(Constituições Apostólicas); e Agostinho (Cidade de Deus XXI.13, 16)
declara que a pena do purgatório é temporária e será, no mínimo, com o
Juízo Final. "Penas
temporárias são sofridas por alguns nesta vida apenas, por outros após a
morte, por outros tanto agora como depois; mas todos eles antes do
último e mais rigoroso juízo".
Natureza da pena
É
evidente, pelas Liturgias e pelos Padres acima citados, que as almas
por quem se ofereceu o sacrifício pacífico foram impedidas da visão de
Deus por um tempo. Elas não estavam "tão boas para estarem habilitadas à felicidade imediata". Para elas, ainda, a morte "não é o salário da natureza, mas do pecado"
(Ambrósio, "De obitu Theodos."); e esta incapacidade para o pecado
torna-as seguras de sua felicidade final. Este é o posicionamento
Católico proclamado por Leão X na Bula "Exurge Domine", que condenou os
erros de Lutero.
As
almas detidas no purgatório estão cientes de que sua felicidade está
apenas prorrogada, ou ainda têm dúvida sobre sua salvação? As antigas
Liturgias e inscrições nas catacumbas falam de um "sono de paz", o que
seria impossível se houvesse qualquer dúvida acerca da salvação
definitiva. Alguns dos Doutores da Idade Média pensavam que a incerteza
da salvação era uma das severas penas do purgatório. (Belarmino, "De
Purgat." lib. II, cap. iv); mas esta opinião em geral não tem nenhum
crédito entre os teólogos da era medieval, nem é possível à luz da
crença no juízo particular. São Boaventura dá como razão de se eliminar
este medo e esta incerteza, a convicção de que elas não podem mais pecar
(lib. IV, dist. xx, p.1, a.1 q. iv): "Est evacuatio timoris propter confirmationem liberi arbitrii, qua deinceps scit se peccare non posse"
(O temor é lançado fora por causa do revigoramento do livre arbítrio
pelo qual a alma sabe que não pode mais pecar), e São Tomás (dist. xxi,
q. i, a.1) diz: "nisi scirent se esse liberandas suffragia non peterent" (se não soubessem que haveriam de ser libertadas, não pediriam sufrágios).
Mérito
Na Bula "Exurge Domine", Leão X condena a proposição (n. 38) "Nec probatum est ullis aut rationibus aut scripturis ipsas esse extra statum merendi aut augendae caritatis"
(Não se prova em lugar algum pela razão ou pela Escritura que elas [as
almas no purgatório] não possam ganhar méritos ou crescer na caridade).
Para elas "chegou a noite, em que o homem não pode mais trabalhar", e a
tradição Cristã sempre considerou que somente nesta vida o homem pode
trabalhar pelo bem de sua alma. Os Doutores da Idade Média, enquanto
aceitando que esta vida é o momento para o mérito e o aumento da graça,
ainda alguns com São Tomás pareceram questionar se há ou não uma
recompensa não essencial que as almas no purgatório possam merecer (IV,
dist. xxi, q. i, a. 3). Belarmino acredita que nesta matéria São Tomás
mudou sua opinião, e faz referência a uma afirmação de São Tomás ("De
Malo", q. vii, a. 11).
Seja
qual for o pensamento do Doutor Angélico, os teólogos aceitam que
nenhum mérito é possível no purgatório, e se surgir a objeção de que as
almas ganham mérito lá pelas suas orações, Belarmino diz que tais
orações são úteis por casa de méritos já adquiridos: "Solum impetrant ex meritis praeteritis quomodo nunc sancti orando pro nobis impetrant licet non merendo"
(Elas rezam pelos méritos adquiridos, como os que agora são santos e
que rezam por nós, mesmo sem ganhar méritos). (loc. cit. II, cap. iii).
Fogo purificador
No
Concílio de Florença, Bessarion argumentou contra a existência de um
fogo purgatorial real, e os Gregos estavam seguros de que a Igreja
romana nunca tinha emitido nenhum decreto dogmático neste assunto. No
Ocidente a crença na existência de um fogo real é comum. Agostinho
(Comentários ao Salmo 37, n. 3) fala da dor que o fogo purgatorial causa
no homem, mais aguda que qualquer outra coisa que o homem possa padecer
nesta vida, "gravior erit ignis quam quidquid potest homo pati in hac vita" (P.L., col. 397). Gregório Magno fala daqueles que depois da vida "expiarão suas faltas por chamas purgatoriais", e acrescenta "ser a dor mais intolerável que qualquer outra sofrível nesta vida" (Ps. 3 poenit., n. 1).
Seguindo
os passos de São Gregório, São Tomás ensina (IV, dist. xxi, q. i, a.1)
que junto da separação da alma da vista de Deus, há a outra pena, pelo
fogo. "Una poena damni, in quantum scilicet retardantur a divina visione; alia sensus secundum quod ab igne punientur",
e São Boaventura não só concorda com São Tomás, como acrescenta (IV,
dist. xx, p.1, a.1, q. ii) que esta pena pelo fogo é mais severa que
qualquer pena que possa ser dada pelos homens nesta vida; "Gravior est omni temporali poena, quam modo sustinet anima carni conjuncta".
Como este fogo afeta as almas dos falecidos os Doutores não sabem, e em
tais matérias vale a exortação do Concílio de Trento que manda serem "excluídas das pregações populares à gente simples as questões difíceis e sutis e as que não edificam nem aumentam a piedade" (Sess. XXV, "De Purgatorio").
SOCORRENDO OS FALECIDOS
A
Escritura e os Padres mandam orações e ofertas pelos falecidos, e o
Concílio de Trento (Sess. XXV, "De Purgatorio") em virtude desta
tradição não só afirma a existência do purgatório, como acrescenta "que as almas que nele estão detidas são aliviadas pelos sufrágios dos fiéis, principalmente pelo sacrifício do altar".
Que
aqueles que estão na terra ainda estão em comunhão com as almas do
purgatório é o ensinamento mais antigo dos Cristãos, e que os vivos
ajudam os mortos por suas orações e obras de satisfação é evidente pela
tradição acima mencionada. Que o Santo Sacrifício tenha sido oferecido
pelos falecidos é Tradição Católica recebida já nos dias de Tertuliano e
Cipriano, e que as almas dos mortos são ajudadas sobretudo "quando repousa a vítima sagrada sobre o altar" é a expressão de Cirilo de Jerusalém, citada acima. Agostinho (Serm. clxii, n. 2) diz que as "orações
e esmolas dos fiéis, o Santo Sacrifício do altar ajudam os fiéis
falecidos e move o Senhor a tratá-los em misericórdia e bondade" e, acrescenta, "esta é a prática da Igreja universal herdada dos Padres".
Se nossas obras de satisfação realizadas em favor dos mortos são
aceitas simplesmente pela benevolência e misericórdia de Deus, ou se
Deus se obriga em justiça a aceitar nossa reparação no lugar delas, não é
uma questão respondida. Francisco Suárez pensa que a aceitação é pela
justiça, e alega a prática comum da Igreja que reúne os vivos e mortos
sem discriminação (De poenit., disp. xlviii, 6, n. 4).
INDULGÊNCIAS
O
Concílio de Trento (Sess. XXV) definiu que as indulgências são "muito
salutares para o povo Cristão" e que "se deve manter o seu uso na
Igreja". É o ensinamento comum dos teólogos Católicos que:
1. indulgências são aplicáveis às almas do purgatório; e
2. indulgências estão disponíveis para elas "em forma de sufrágio" (per modum suffragii).
(1)
Agostinho (Cidade de Deus XX.9) declara que as almas dos fiéis
falecidos não estão separadas da Igreja, que é o Reino de Cristo, e por
esta razão as orações e obras dos vivos são úteis aos mortos. "Se então", argumenta Belarmino (De indulgentiis, xiv) "podemos
oferecer nossas orações e satisfações em favor das almas do purgatório,
por sermos membros do grande corpo de Cristo, porque não pode o Vigário
de Cristo aplicar a essas almas a satisfação superabundante de Cristo e
seus santos, da qual ele é dispenseiro?" Esta é a doutrina de São
Tomás (IV, Sent., dist. xlv, q. ii, a. 3, q. 2) que afirma que as
indulgências aproveitam principalmente para aquele que realiza a obra
indulgenciada, e ao menos em segundo plano pode aproveitar para os
mortos, se a forma em que a indulgência é dada estiver expressa de tal
modo que possibilite esta interpretação, e ele acrescenta "nem
há qualquer razão pela qual a Igreja não possa dispor de seu tesouro de
méritos em favor dos mortos, como certamente se faz em favor dos vivos".
(2)
São Boaventura (IV, Sent., dist. xx, p. 2, q. v) concorda com São
Tomás, mas acrescenta que tal "remissão não se faz a modo de absolvição,
como no caso dos vivos, mas como sufrágio" (Haec non tenet modum judicii, sed potius suffragii).
Esta opinião de São Boaventura, de que a Igreja através do seu Supremo
Pastor não absolve juridicamente as almas do purgatório da pena devida
pelos seus pecados, é o ensinamento dos Doutores. Eles apontam (Gratian,
24 q. ii, 2, can.1) que no caso daqueles que partiram desta vida, o
julgamento é reservado a Deus; eles alegam a autoridade de Gelásio (Ep.
ad Fausturn; Ep. ad. Episcopos Dardaniae) como apoio a seu argumento
(Gratian ibid.), e também insistem que os Romanos Pontífices, quando
concedem indulgências aplicáveis aos mortos, acrescentam a restrição "per modum suffragii et deprecationis". Esta frase é encontrada na Bula de Sisto IV "Romani Pontificis provida diligentia", 27 de Nov. de 1447.
A frase "per modum suffragi et deprecationis"
tem sido interpretada de várias formas pelos teólogos (Belarmino, "De
indulgentiis", p.137). O próprio Belarmino diz: "A verdadeira opinião é
de que indulgências aroveitam como sufrágio, pois não aproveitam ao modo
de absolvição jurídica 'quia non prosunt per modum juridicae absolutionis'." Mas de acordo com o mesmo autor, os sufrágios dos fiéis aproveitam às vezes "per modum meriti congrui" (por meio de mérito), às vezes "per modum impetrationis" (por meio de súplica), às vezes "per modum satisfactionis" (por meio de satisfação); mas quando se trata de aplicar uma indulgência a alguém no purgatório, sempre é "per modum suffragii satisfactorii" e por esta razão "o
papa não absolve a alma no purgatório das penas devidas pelos seus
pecados, mas oferece a Deus, do tesouro da Igreja, tudo o que seja
necessário para o cancelamento de sua pena".
Se
a questão for refeita indagando se tal satisfação é aceita por Deus por
misericórdia e benevolência, ou "ex justitia", os teólogos não estão de
acordo — alguns sustentam uma opinião e outros, a outras. Belarmino,
depois de investigar os dois lados (pp. 137, 138), não se atreve a
deixar nenhuma de lado, mas está inclinado a pensar que a primeira é
mais razoável enquanto diz que a última está em harmonia com a piedade
("admodum pia").
Condições
Para que uma indulgência aproveite para os que estão no purgatório, várias condições são necessárias:
A indulgência deve ser estabelecida pelo papa.
Deve
haver razão suficiente para se dar a indulgência, e esta razão deve ser
algo referente à glória de Deus e o bem da Igreja, não meramente o
proveito que resulta às almas no purgatório.
A obra piedosa deve ser como no caso das indulgências para os vivos.
Se
o estado de graça não estiver entre os requisitos, em todo caso a
pessoa pode lucrar a indulgência para os falecidos, ainda que ele não
esteja na amizade com Deus (Belarmino, loc. cit., p. 139). Francisco
Suárez (De Poenit., disp. Iiii, s. 4, n. 5 and 6) deixa isso bem claro
quando diz: "Status gratiæ solum requiritur ad tollendum obicem indulgentiæ"
(o estado de graça só se requer para remover algum impedimento da
alma), e no caso das santas almas não pode haver impedimento. Este
ensinamento está ligado à doutrina da Comunhão dos Santos, e os
monumentos das catacumbas representam os santos e mártires como que
intercedendo a Deus pelos mortos. Também as orações das antigas
liturgias falam de Maria e dos santos intercedendo pelos que passaram
desta vida. Agostinho acredita que um enterro numa basílica cujo titular
seja um santo mártir é de valor para o falecido, pois os que ali
celebram a memória daquele que sofrem, recomendarão orações ao mártir
por aquele que passou desta vida (Belarmino, lib. II, xv). No mesmo
lugar Belarmino acusa Dominicus A Soto de imprudência, porque ele negou
esta doutrina.
INVOCAÇÃO DAS ALMAS
As
almas do purgatório rezam por nós? Podemos chamá-las em nossas
necessidades? Não há definição ou decisão da Igreja neste assunto e nem
os teólogos se pronunciaram definitivamente no que diz respeito à
invocação das almas do purgatório e sua intercessão pelos vivos. Nas
antigas liturgias não há orações da Igreja dirigida aos que estão ainda
no purgatório. Nas tumbas dos primeiros cristãos nada é tão comum quanto
uma oração ou súplica pedindo ao falecido para intercer a Deus pelos
amigos vivos, mas estas inscrições parecem supor que o falecido já está
com Deus.
São
Tomás (II-II.83.11) nega que as almas do purgatório rezam pelos vivos, e
afirma que eles não estão em condição de rezar por nós, antes nós é que
devemos interceder por eles. Não obstante a autoridade de São Tomás,
muitos teólogos renomados sustentam que as almas do purgatório rezam por
nós e que devemos invocar seu auxílio.
Belarmino
(De Purgatorio, lib. II, xv,) diz que a razão alegada por São Tomás não
é de todo convincente e sustenta que, em virtude de seu amor de Deus e
sua união com ele, suas orações devem ter um grande poder de
intercessão, pois elas são deveras superiores a nós no amor de Deus e na
intimidade da união com ele. Francisco Suárez (De poenit., disp. xlvii,
s. 2, n. 9) vai além e afirma "que
as almas do purgatório são santas, queridas a Deus, amam-nos com um
verdadeiro amor e são cientes de nossos desejos; pois elas sabem, de um
modo geral, quais são nossas necessidades e perigos, e quão grande é
nossa necessidade do auxílio e da graça divinos".
Quando
há a questão de invocar as orações dos que estão no purgatório,
Belarmino (loc. cit.) diz que isto é supérfluo, ordinariamente falando,
pois elas são ignorantes de nossas circunstâncias e condições. Isto está
em desacordo com a opinião de Francisco Suárez, que admite
conhecimento, pelo menos de um modo geral, e também com a opinião de
muitos teólogos atuais que apontam para a prática hoje comum de quase
todos os fiéis dirigirem suas orações e pedidos de ajuda para aqueles
que ainda estão no lugar da purificação. Scavini (Theol. Moral., XI, n.
174) não vê razões pelas quais as almas do purgatório não possam rezar
por nós, da mesma forma como rezamos uns pelos outros.
Ele
afirma que esta prática tornou-se comum em Roma, e teve o grande nome
de Santo Afonso em seu favor. Santo Afonso, em sua obra "Grandes Meios
de Salvação", cap. I, III, 2, depois de citar Sylvius, Gotti, Lessius, e
Medina como favoráveis à sua opinião, conclui: "então,
as almas do purgatório, sendo amadas por Deus e confirmadas na graça,
não têm absolutamente qualquer impedimento para rezarem por nós. Ainda
que a Igreja não as invoque ou implore sua intercessão, porque
normalmente elas não têm conhecimento de nossas orações. Mas podemos
acreditar piamente que Deus torna nossa orações conhecidas a elas". Ele também alega a autoridade de Santa Catarina de Bolonha, a qual "sempre que desejou algum favor, recorreu às almas do purgatório e foi imediatamente ouvida".
UTILIDADE DA ORAÇÃO PELOS FALECIDOS
É
da fé tradicional dos Católicos que as almas do purgatório não estão
separadas da Igreja, e que a caridade, que é o laço de união entre os
membros da Igreja, abraça estes que partiram desta vida na graça de
Deus. Assim, uma vez que as nossas orações e nossos sacrifícios podem
ajudar aqueles que ainda estão à espera no purgatório, os santos não
hesitaram em nos avisar que temos um verdadeiro dever para com aqueles
que ainda estão na expiação purificatória. A Santa Igreja, pela
Congregação das Indulgências, em 18 de dezembro de 1885, concedeu uma
bênção especial ao chamado "ato heróico", pelo qual "um
membro da Igreja Militante oferece a Deus, pelas almas do purgatório,
todas as obras satisfatórias que ele realizará durante sua vida e também
os sofrimentos que poderá passar depois da morte [no purgatório]" (Heroic Act, vol. VII, 292).
A
prática de devoção aos falecidos é também consoladora para a humanidade
e eminentemente digna de uma religião que dá auxílio aos mais puros
sentimentos do coração humano. "Doce", disse o Cardeal Wiseman (lecture XI), "é
a consolação de um homem morto que, ciente de sua imperfeição, acredita
que há outros que intercederão por ele, quando já não há espaço para
seus próprios méritos; confortador para os que vivem e se afligem é o
pensamento de que eles possuem meios poderosos para livrar seus amigos.
No primeiro momento de luto, este sentimento normalmente ultrapassará o
preconceito religioso, curvará o descrente sobre seus joelhos ao lado do
corpo de seu amigo e lhe roubará uma inconsciente prece por repouso;
este é um impulso da natureza que, pelo momento, ajudada por analogias
da verdade revelada, toma posse desta crença consoladora. Mas isso é só
uma luz melancólica e passageira, enquanto o sentimento Católico, de
torcer [pelo falecido] mesmo com um luto solene, assemelha-se a uma
lâmpada inextinguível, a qual se diz que a piedade dos antigos pendurou
diante dos sepulcros de seus mortos".
Fonte: Hanna, Edward. "Purgatory." The Catholic Encyclopedia. Vol. 12. New York: Robert Appleton Company, 1911. 6 Nov. 2010 http://www.newadvent.org/cathen/12575a.htm.
Nenhum comentário:
Postar um comentário